quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Realidade

E o riso, antes contido, torna-se gargalhada repentina, histérica; escorre depressa pelos cantos da boca escancarada, pinga incessante sobre a pele despida, propaga-se incontrolável em ecos aflitos, altos, gritos; berros descontrolados, as faces contorcidas, os olhos revirando-se de êxtase ou pavor diante da realidade.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Armaduras

Que nobre função desempenham as armaduras, protegendo-nos dos usuais riscos cotidianos, não?
Ah!  Como brilham, como cintilam seus adornos metálicos, como amedronta a todos sua inegável tenacidade! Pesadas, rígidas, feitas para destruírem e para durarem.
É por isso que nós, como soldados, vestimos armaduras.
Desde tenros anos, carregamos uma. Como esperado, ela evita que meios externos nos machuquem, escondendo nossos corpos. Seus desníveis e farpas, porém, ferem a pele emplastrada de sangue e suor.
É uma sorte que ninguém o veja  — seria uma vergonha expor tamanha fragilidade. É por isso que vestimos armaduras. Vestimos armaduras pois, como armaduras, almejamos ser rijos, fortes, frios, mesmo que seja impossível o ser. Vestimos armaduras pois em meio a tantas batalhas, por ínfimas que sejam, alguém disse que são elas que prometem proteção. E nós acreditamos.
Do fundo de sua anatomia metálica, por entre as frestas que nos restam, espiamos o movimento lá fora. Encolhidos, nus e sedentos. Aceitamos, esmagados pelo peso das diversas camadas que conferem beleza e durabilidade à sua carcaça, as escaras que nos causa. Mais do que nos defender, armaduras nos escondem —  dos outros e de nós. Não contestamos ou questionamos seu uso. Usamos nossas ilusórias armaduras pois damos à vida a ilusória ideia de ser uma guerra.
É por isso que nós, como soldados, não vivemos. Marchamos.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Catarina

Catarina sentou na escada que subia para a  pequena igreja. Era uma igreja antiga, escondida em qualquer esquina vazia do centro da cidade, onde podiam-se ouvir, meio que abafados pela distância, carros buzinando, vozes estridentes, música alta e outros sons vagos e barulhos corriqueiros. Na tal rua da igreja, porém, só o que havia era silêncio e Catarina (exceto por um ou dois transeuntes e um bem-te-vi bicando qualquer coisa rente à valeta). Seus cabelos escuros, tortuasamente repicados por uma tesoura escolar, faziam cócegas em seus ombros pequenos e brancos feito leite; e os olhos, da cor do mel, estavam fixos no asfalto brilhante. Uma folhinha, pequena que só, caiu sobre o joelho da menina. Seus lábios esboçaram um sorriso. Logo voltaram a uma expressão séria. Sabia que devia estar em casa. Mas. Mas? Mas Catarina não tinha casa. Olhou os pés descalços, um pouco sujos. Tentava manter-se limpa. As ruas eram sujas e a sujeira impregnava a pele de quem nelas residia. Muitas outras pessoas que moravam nos prédios imponentes que as sombreavam  pensavam que não, mas também eram. A cidade é encardida.
 É fato que tinha feito amigos pelas avenidas, sim, mas seus olhos distantes imaginavam se um dia moraria em um daqueles prédios, ou se, de pequena, morara em alguma casa qualquer, com alguma mãe. Só de pensar um pouquinho, dava pra sentir como devia ser bom. Mas passava rápido. Imaginava se tinha um nome. Achava Catarina bonito, e por isso o escolhera. Era Catarina. Mas qual era seu nome? Quem era Catarina?
Catarina tinha fome de pão e muitas outras fomes e sedes preenchiam a menina, também.
Começou a chover. Fechou os olhos e derramou seu pranto silencioso junto com com a chuva, para disfarçar as lágrimas.

domingo, 9 de janeiro de 2011

tudo sujo
todo sangue
no chão
toda fera
toda fúria
toda fuga
todo não
todo corte
todo filho
tanta vida
em cada morte

toda guerra
até no nome
sempre erra